“Laranja Mecânica”, a história do jovem que amava violência, sexo e Beethoven, faz hoje 40 anos

 

Foi o Rodrigo Saraiva, que partilha comigo a paixão por "Laranja Mecânica", quem nos chamou a atenção para a efeméride: o filme de Stanley Kubrick faz hoje 40 anos sobre a sua estreia.

 

Recordo aqui porque o classifico de "o filme da minha vida" (já não me recordo onde o texto foi inicialmente publicado):

 

Existe o filme e existe a circunstância. Comecemos por esta. Os que julgam que a censura do Estado Novo era “apenas” política estão enganados. Do mesmo modo que não podíamos beber Coca-Cola, por causa do condicionamento industrial, era-nos vedado ir ao cinema ver filmes como “Último tango”, certamente por causa da cena da manteiga.

 

Foi pois com redobrado entusiasmo que, em Paris, algures no início dos anos 70, procurei a novidade de Stanley Kubrick “Laranja Mecânica”. Kubrick tinha já assinado referências cinematográficas como “Horizontes de Glória”, “Spartacus”, “Lolita” e “Dr Estranhamor”, e transformara-se, recentemente, num realizador de culto com “2001: Odisseia no Espaço”.

 

Na capital francesa, ir ao cinema era um ritual chato. Tinha de se esperar em fila, na rua, à chuva e ao frio. Os bilhetes eram caros. Os lugares não eram reservados. Quando se iniciava a projecção, parecia que tínhamos chegado ao céu passando pelo purgatório.

 

Tenho presente, logo nos primeiros minutos do filme, aquela cena em que os quatro jovens passeiam na rua deserta sem nada que fazer. Alex anseia por um catalizador de adrenalina. É então que, através de uma janela aberta, uma aparelhagem liberta o som de música clássica e ele compreende logo o que “tem” de fazer: agredir quem tem próximo, por sinal um dos companheiros. Gratuitamente.

 

Em segundos, a violência transforma-se num bailado. O ambiente é cinzento, a neblina sobrepõe-se ao céu e esconde a luz, a água do rio está escura pela sujidade. Alex e os seus “amigos” vestem fatos-macacos brancos e empunham bastões pretos. Parecem dançar. “C’ est merveilleux”, poder-se-ia ouvir alguém murmurar na sala.

 

Kubrick é um homem da minúcia e da estética. Ao escolher mostrar-nos a violência fá-lo com uma beleza e um bom-gosto chocantes. Para isso, conta-nos a história de um jovem apaixonado por sexo, agressões e Beethoven. “The old Ludwig van”, como ele gosta de dizer.

 

Chama-lhe Alex, mas é o oposto daquele Alex do romantismo saudoso dos anos 70 que o cinema nos trouxe mais tarde. A partir de um romance de Anthony Burgess, escolhe para o papel um actor desconhecido – Malcolm McDowell que, hoje em dia, usa uma barbicha branca intelectual – e transforma-o em “a wicked son of a bitch”.

 

Perfeccionista e provocador, leva-o a beber leite no Korova Milk Bar e a procurar música numa discoteca que remete para o “2001”. A cena de sexo, um “ménage à trois”, passa ao ritmo de um “Guilherme Tell” cinco vezes acelerado.  Os cenários são do género “Sgt Peppers” ou “Flower Power”, mas estão para eles como o Mal está para o Bem. O prédio onde mora tem as paredes pinchadas, o lixo amontoado, o elevador vandalizado, mas tudo num ambiente ultra-moderno.

 

Alex acaba condenado a 14 anos de prisão. Há um ministro preocupado com a relação entre a popularidade eleitoral e as taxas de criminalidades – “a violência criminal será coisa do passado” é o “sound bite” - que o torna cobaia de uma lavagem ao cérebro. A experiência condiciona-o. Deixa de se interessar pelo sexo e pela violência e, inadvertidamente, pela música. Toda a música? Não, apenas a 9ª sinfonia de Beethoven.

 

É com a 9ª que o tentam matar. Já está em liberdade transformado em herói mediático e exemplo dos resultados da nova política governamental. Descobre que os pais trocaram o coração (e o quarto) por um outro jovem. Descobre que os seus companheiros de maldade se tornaram... polícias. Rapidamente é vítima de alguns daqueles que, no passado, tinham sido suas vítimas. Resta-lhe tentar o suicídio.

 

Na cama do hospital, celebra um pacto de sangue com o ministro agora preocupado com os tablóides que o acusam de ser desumano. Tudo acaba surpreendentemente bem com muitos fotógrafos e o espectáculo do som analógico: grandes colunas (“caixas” com quase 2 metros de altura e 1 de largura), os pratos de metal e plástico nobre transparente, os gravadores de fitas de arrasto, as cassetes.

 

O realizador não se deu bem com o filme. No Reino Unido, onde viveu a maior parte da sua vida apesar de ser nova-iorquino, os jornais passaram a apelidar de “clockwork-type attack” os episódios de violência real. A exploração mediática desses casos teve um impacto devastador na sua família.“Laranja mecânica” foi retirada das salas às 61 semanas de exibição. Por iniciativa de Kubrick. 

publicado por lpm às 12:32 | link deste post | comentar